Nas minhas lides profissionais, conhecia há dias esta mulher fantástica - D. Custódia.
Do alto dos seus 94 anos, contou-me a história da sua vida, feita de coisas simples, mas tão ricas.
Fiquei encantado com tanta sabedoria, fazendo-nos, por instantes, acreditar que este mundo, afinal, é muito belo.
Fui encontrá-la, quase por acaso, numa aldeia de Amarante, encravada na serra da Meia Via. Fiz várias imagens da senhora, cujas expressões intensas ainda hoje recordo, sobretudo o seu olhar terno, mas vincado...
Em Canadelo ouvia-a de coração aberto e escrevi para a Agência Lusa e para os meus jornais uma peça jornalística, que agora transcrevo:
Aos 94 anos, Maria Custódia uma idosa da aldeia serrana de Canadelo, Amarante, apanhou o susto da sua já longa vida: uma citação, a primeira, para se apresentar em tribunal.
A notificação judicial era, para seu maior espanto, de Vila Franca de Xira e não do tribunal da sede do concelho, Amarante, onde a idosa se mexia com mais à vontade.
E a surpresa foi ainda maior quando soube do que se tratava: era para assinar o divórcio do marido, também nonagenário, que já não via há 57 anos.
“Pensava que ele tinha morrido”, confessou.
Maria Custódia, que teve de fazer mais de 300 quilómetros para desfazer um casamento que supunha já não existir, admitiu que “ficou assustada” com o papel que recebeu.
“Fui ao tribunal de Amarante, onde tenho muitos amigos e disseram-me que tinham mesmo de ir a Vila Franca de Xira. Lá reencontrei o meu homem, que fugiu há muitos anos deixando-me sozinha com dois filhos ainda pequenos”, disse.
Maria Custódia fala numa linguagem simples, mas clara. Percebe-se, nos olhos, que sente aquilo que diz.
Às perguntas responde com prontidão, denotando uma memória muito viva, que lhe permite situar no tempo, e no espaço, situações vividas há muitas décadas.
Apesar da idade, disse ter encarado com grande naturalidade o divórcio.
“Foi um alívio, porque ele não merecia que eu fosse mulher dele. Disse-lhe isso no tribunal e ele nem respondeu”, afirmou.
Entre sorrisos, e uma franca gargalhada, admitiu que, mal regressou a Amarante “foi logo tratar da actualização do Bilhete de Identidade”.
A idosa é analfabeta, mas – sublinhou – sabe fazer contas.
"Não sei não ler, mas tenho pena de não saber. Mas digo-lhe que nas contas nunca me enganei", garantiu.
Os poucos habitantes que restam em Canadelo, na maioria idosos, apreciam a maneira de ser de Maria Custódia.
“É a alegria da aldeia”, destaca o presidente da Junta, Manuel Claro.
Maria Custódia, atenta ao que dela se dizia, deixou escapar um sorriso de orelha a orelha.
Ajeitando um lenço que lhe cobre parcialmente a cabeça, logo se apressou a fazer jus ao elogio do amigo autarca, cantarolando uma melodia que suscitou a curiosidade de quem passava.
Emocionante, a voz viva da mulher. Mas, mais intenso ainda, o brilho do olhar, que se perdia na encumeada verdejante da Serra da Meia Via.
“Ouvindo cantar a mulher não se percebe o duro percurso de vida que teve. Ainda assim, mantém esta boa disposição diária”, acrescentou o presidente da Junta.
Desde criança que, Maria Custódia, enfrenta as agruras de quem sempre viveu numa das mais recônditas aldeias do distrito do Porto, situada a quase de 20 quilómetros da sede de concelho.
Hoje a estrada até Amarante, apesar de sinuosa, conta com um bom pavimento colocado pela câmara, mas há várias décadas não passava de um serpenteante estradão de montanha.
Maria Custódia chegou a fazer diariamente essa viagem a pé. Durante 20 anos era quem trazia o correio e mercearia de Amarante até Canadelo, fazendo quase 40 quilómetros por dia, mais de seis horas de viagem no total
“Era muito duro, mas eu gostava. Ganhava 25 tostões. Conhecia-se muita gente por essas aldeias fora até Amarante. Gente boa que gostava de mim”, contou, confessando saudade de pessoas da sua geração que já partiram.
Essas duas décadas foram o período mais difícil da sua vida. Sozinha – o marido já tinha desaparecido – criou dois filhos.
“Cheguei a passar fome, mas as coisas foram-se arranjando”, disse.
Percebeu-se que não queria falar de coisas tristes, mas não hesitou em voltar à mala das recordações quando falou da sua infância.
Sorridente foi contando, enquanto gesticulava com a mão direita, à cadência da conversa:
“Olhe, passava os dias a carregar molhos de lenha para os fornos da cal. Subia e descia estas encostas muitas vezes por dia”, contou, apontando para os montes que cercam a aldeia.
A idosa recordou os grandes fornos que existiam em Canadelo utilizados para fazer cal, que era transportada em mulas até Amarante.
Do seu longo percurso de vida, também fala do tempo em que, como muita gente daquelas paragens, ajudava a limpar o minério no rio Olo. Era o estanho extraído das minas de Vieiros, desactivadas há algumas décadas.
“Fazíamos de tudo. Eram tempos difíceis e tínhamos de nos manter vivos”, confessou.
Hoje Maria Custódia enfrenta mais um momento difícil.
Com um rendimento pouco superior a 200 euros por mês, os proprietários da pequena casa que habita sozinha querem que deixe o espaço.
“Mas eu não tenho para onde ir”, lamenta-se Maria Custódia, enquanto se queixa que o dono da casa até a electricidade lhe cortou.
Utiliza velas para iluminar a habitação à noite e nem sequer pode ligar o pequeno frigorífico para conservar os alimentos.
O presidente da junta garante que a idosa vive numa situação muito precária, precisando da ajuda para sobreviver.
Apesar da insistência, recusou-se, por confessada vergonha, a mostrar onde vive.
Sente-se muito amargurada e apenas pede que a ajudem a arranjar um espaço onde viver com algum conforto.
“Ficava muito feliz se me arranjassem uma casinha”, disse a idosa, segurando carinhosamente o braço do jornalista, nele fixando o olhar, num silêncio só perturbado pelo ressoar afastado do rio Olo.
A junta está a tentar a ajudar e o presidente da Câmara de Amarante, Armindo Abreu, até já disse que a senhora podia utilizar a antiga escola primária da aldeia, desactivada há dois anos, que a autarquia se prontificava a recuperar.
Inicialmente a idosa aceitou, mas hoje hesita, porque a escola está afastada algumas centenas de metros do centro de aldeia e o acesso é íngreme.
“Está muito longe e tenho medo de viver lá sozinha. Se me der alguma coisa não terei quem me ajude”, salientou, corroborada pelo presidente da junta.
Manuel Claro está atentar encontrar outra solução, que poderá passar pela adaptação do rés-do-chão da sede da junta.
“Estamos a fazer o que podemos para ajudar a dona Custódia, que está a sofrer muito. Ela merece o apoio de toda a aldeia”, sustenta o autarca de Canadelo.
Mas a idosa não quis terminar a conversa com lamúrias, como disse ao jornalista.
Falou então do quanto gostava de chegar aos 100 anos.
“Se conseguisse havia de dançar muito nesse dia”, prometeu.
Do alto dos seus 94 anos, contou-me a história da sua vida, feita de coisas simples, mas tão ricas.
Fiquei encantado com tanta sabedoria, fazendo-nos, por instantes, acreditar que este mundo, afinal, é muito belo.
Fui encontrá-la, quase por acaso, numa aldeia de Amarante, encravada na serra da Meia Via. Fiz várias imagens da senhora, cujas expressões intensas ainda hoje recordo, sobretudo o seu olhar terno, mas vincado...
Em Canadelo ouvia-a de coração aberto e escrevi para a Agência Lusa e para os meus jornais uma peça jornalística, que agora transcrevo:
Aos 94 anos, Maria Custódia uma idosa da aldeia serrana de Canadelo, Amarante, apanhou o susto da sua já longa vida: uma citação, a primeira, para se apresentar em tribunal.
A notificação judicial era, para seu maior espanto, de Vila Franca de Xira e não do tribunal da sede do concelho, Amarante, onde a idosa se mexia com mais à vontade.
E a surpresa foi ainda maior quando soube do que se tratava: era para assinar o divórcio do marido, também nonagenário, que já não via há 57 anos.
“Pensava que ele tinha morrido”, confessou.
Maria Custódia, que teve de fazer mais de 300 quilómetros para desfazer um casamento que supunha já não existir, admitiu que “ficou assustada” com o papel que recebeu.
“Fui ao tribunal de Amarante, onde tenho muitos amigos e disseram-me que tinham mesmo de ir a Vila Franca de Xira. Lá reencontrei o meu homem, que fugiu há muitos anos deixando-me sozinha com dois filhos ainda pequenos”, disse.
Maria Custódia fala numa linguagem simples, mas clara. Percebe-se, nos olhos, que sente aquilo que diz.
Às perguntas responde com prontidão, denotando uma memória muito viva, que lhe permite situar no tempo, e no espaço, situações vividas há muitas décadas.
Apesar da idade, disse ter encarado com grande naturalidade o divórcio.
“Foi um alívio, porque ele não merecia que eu fosse mulher dele. Disse-lhe isso no tribunal e ele nem respondeu”, afirmou.
Entre sorrisos, e uma franca gargalhada, admitiu que, mal regressou a Amarante “foi logo tratar da actualização do Bilhete de Identidade”.
A idosa é analfabeta, mas – sublinhou – sabe fazer contas.
"Não sei não ler, mas tenho pena de não saber. Mas digo-lhe que nas contas nunca me enganei", garantiu.
Os poucos habitantes que restam em Canadelo, na maioria idosos, apreciam a maneira de ser de Maria Custódia.
“É a alegria da aldeia”, destaca o presidente da Junta, Manuel Claro.
Maria Custódia, atenta ao que dela se dizia, deixou escapar um sorriso de orelha a orelha.
Ajeitando um lenço que lhe cobre parcialmente a cabeça, logo se apressou a fazer jus ao elogio do amigo autarca, cantarolando uma melodia que suscitou a curiosidade de quem passava.
Emocionante, a voz viva da mulher. Mas, mais intenso ainda, o brilho do olhar, que se perdia na encumeada verdejante da Serra da Meia Via.
“Ouvindo cantar a mulher não se percebe o duro percurso de vida que teve. Ainda assim, mantém esta boa disposição diária”, acrescentou o presidente da Junta.
Desde criança que, Maria Custódia, enfrenta as agruras de quem sempre viveu numa das mais recônditas aldeias do distrito do Porto, situada a quase de 20 quilómetros da sede de concelho.
Hoje a estrada até Amarante, apesar de sinuosa, conta com um bom pavimento colocado pela câmara, mas há várias décadas não passava de um serpenteante estradão de montanha.
Maria Custódia chegou a fazer diariamente essa viagem a pé. Durante 20 anos era quem trazia o correio e mercearia de Amarante até Canadelo, fazendo quase 40 quilómetros por dia, mais de seis horas de viagem no total
“Era muito duro, mas eu gostava. Ganhava 25 tostões. Conhecia-se muita gente por essas aldeias fora até Amarante. Gente boa que gostava de mim”, contou, confessando saudade de pessoas da sua geração que já partiram.
Essas duas décadas foram o período mais difícil da sua vida. Sozinha – o marido já tinha desaparecido – criou dois filhos.
“Cheguei a passar fome, mas as coisas foram-se arranjando”, disse.
Percebeu-se que não queria falar de coisas tristes, mas não hesitou em voltar à mala das recordações quando falou da sua infância.
Sorridente foi contando, enquanto gesticulava com a mão direita, à cadência da conversa:
“Olhe, passava os dias a carregar molhos de lenha para os fornos da cal. Subia e descia estas encostas muitas vezes por dia”, contou, apontando para os montes que cercam a aldeia.
A idosa recordou os grandes fornos que existiam em Canadelo utilizados para fazer cal, que era transportada em mulas até Amarante.
Do seu longo percurso de vida, também fala do tempo em que, como muita gente daquelas paragens, ajudava a limpar o minério no rio Olo. Era o estanho extraído das minas de Vieiros, desactivadas há algumas décadas.
“Fazíamos de tudo. Eram tempos difíceis e tínhamos de nos manter vivos”, confessou.
Hoje Maria Custódia enfrenta mais um momento difícil.
Com um rendimento pouco superior a 200 euros por mês, os proprietários da pequena casa que habita sozinha querem que deixe o espaço.
“Mas eu não tenho para onde ir”, lamenta-se Maria Custódia, enquanto se queixa que o dono da casa até a electricidade lhe cortou.
Utiliza velas para iluminar a habitação à noite e nem sequer pode ligar o pequeno frigorífico para conservar os alimentos.
O presidente da junta garante que a idosa vive numa situação muito precária, precisando da ajuda para sobreviver.
Apesar da insistência, recusou-se, por confessada vergonha, a mostrar onde vive.
Sente-se muito amargurada e apenas pede que a ajudem a arranjar um espaço onde viver com algum conforto.
“Ficava muito feliz se me arranjassem uma casinha”, disse a idosa, segurando carinhosamente o braço do jornalista, nele fixando o olhar, num silêncio só perturbado pelo ressoar afastado do rio Olo.
A junta está a tentar a ajudar e o presidente da Câmara de Amarante, Armindo Abreu, até já disse que a senhora podia utilizar a antiga escola primária da aldeia, desactivada há dois anos, que a autarquia se prontificava a recuperar.
Inicialmente a idosa aceitou, mas hoje hesita, porque a escola está afastada algumas centenas de metros do centro de aldeia e o acesso é íngreme.
“Está muito longe e tenho medo de viver lá sozinha. Se me der alguma coisa não terei quem me ajude”, salientou, corroborada pelo presidente da junta.
Manuel Claro está atentar encontrar outra solução, que poderá passar pela adaptação do rés-do-chão da sede da junta.
“Estamos a fazer o que podemos para ajudar a dona Custódia, que está a sofrer muito. Ela merece o apoio de toda a aldeia”, sustenta o autarca de Canadelo.
Mas a idosa não quis terminar a conversa com lamúrias, como disse ao jornalista.
Falou então do quanto gostava de chegar aos 100 anos.
“Se conseguisse havia de dançar muito nesse dia”, prometeu.
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