Assinalou-se recentemente mais um aniversário da Revolução dos Cravos.
A geração dos “trintões”, na qual me incluo, era ainda criança pequena quando se deu o 25 de Abril. Não me lembro dessa data histórica, mas retenho algumas imagens, que me impressionaram, dos períodos conturbados do chamado PREC, sobretudo as tempestivas reuniões de trabalhadores que se realizavam em empresas próximas da minha área de residência. Recordo também as pressões e os insultos que um industrial da época, um homem bom, de nome Nunes, dirigente do PPD, sofria de uns homens duros, presumia eu na altura, seus empregados.
Também me lembro dos murais pintados em locais estratégicos. Eram, em alguns casos autênticas obras de arte realizadas, pelo que percebia na altura, por pessoas ligadas ao MRPP e outras forças de esquerda mais “ortodoxa”. Numa célebre noite de Verão de 1975 ou 1976, tinham roubado o carro ao meu pai, que era proprietário de um pequeno café. Terminada a jornada de trabalho, sem carro para seguir para casa, o meu pai iniciou o trajecto até casa a pé, acompanhado por mim, então criança pequena, mas precocemente interessada pelo que a rodeava, apesar da hora imprópria para um menino daquela idade. Eram uns quatro quilómetros. Pelo caminho, nas ruas mal iluminadas de uma vila industrial do Vale do Ave, íamos vendo os tais grupos, de pincéis na mão e grandes baldes, a pintar os muros, com tonalidades predominantemente amarelas e vermelhas. Parávamos por vezes junto ao pessoal. O meu pai, homem de esquerda moderada, enquanto segurava a minha mão, rapidamente se entendia com aquela “gente” mais radical, mas com uma criatividade que impressionava o meu progenitor e eu próprio. Aqueles rostos de expressão crua e aqueles martelos reproduzidos no granito de um grande muro ficaram retidos na minha memória. Hoje, 30 anos volvidos lembro-me com impressionante precisão daquilo que os meus olhos viram e o meu peito sentiu: uma emoção avassaladora tal era a força daquelas imagens, à qual se seguiu uma onda de perguntas que o meu saudoso pai teve dificuldade em responder. Aquele menino queria perceber o que significavam aquelas imagens, aqueles rostos, que anos depois identifiquei como figuras de revoluções socialistas.
Um dia o meu “velho” recebeu um telefonema. Sem se quedar, eufórico, vestiu um casaco, pegou numa bandeira, e partiu em direcção a Braga. Soube alguns anos depois que tinha ido participar numa grande manifestação para assinalar um aniversário do 25 de Abril ou do 1º de Maio.
Nesse tempo de jovem democracia viviam-se essas incidências com um entusiasmo extraordinário e com um idealismo já há muito desaparecido. Eu percebia isso. O menino que acompanhava o pai para todo o lado absorvia o que o rodeava. Os ânimos era exacerbados, como aquela discussão a que assisti num café, entre dois homens de meia-idade por causa sabe-se lá do quê. Eles gritavam, davam murros na mesa e esgrimiam argumentos. Nomes como Mário Soares e Álvaro Cunhal saltitavam na conversa acesa, cujo desfecho não me recordo, mas que deveria estar relacionada com o famoso debate televisivo que os dois travavam. Meu pai, já em casa, serenava-me, explicava-me os seus pontos de vista e eu, confuso, procurava percebê-los. Também os cartazes do PCP e do MES me impressionavam. Sobretudo porque tinham estrelas, uma figura geométrica que à data me fascinava. Por não saber ainda ler, perguntava sempre o que queriam dizer determinadas letras. Meu pai dizia que quem mais ordena é o povo. Não percebi nada... Preferia ouvir os altifalantes do carro, um velho e ruidoso Carocha vermelho que passava constantemente na rua a convocar os operários para plenários. Uma voz forte apelava aos camaradas, enquanto se ouviam músicas revolucionárias. Para o menino, sentado no beiral da janela, era fascinante.
Hoje, a cada 25 de Abril, lembro-me destas coisas. O meu pai já partiu e não posso partilhar com ele estas recordações da meninice. Lembro-me da sua mão forte segurando a minha. Deixou-me um rico baú de memórias de uma fase crucial da nossa democracia. O menino não percebia que se estava a fazer história. O homem de hoje está reconhecido aos que, como o meu pai, permitiram que este simples acto de escrever seja a coisa mais natural de mundo, num país com problemas é certo, mas onde a democracia se consolidou e ser-se livre é quase tão natural como respirar. Viva a 25 de Abril, viva a liberdade!
Armindo Mendes
segunda-feira, 15 de maio de 2006
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